16 de fevereiro de 2012

“É o mercado quem tem que estar subordinado ao Carnaval, e não o contrário”


*Revista Muito »
O pesquisador Paulo Miguez, doutor em Comunicação e Cultura e professor do IHAC-Ufba, conversou com Muito sobre os novos rumos do Carnaval de Salvador. Confira a entrevista na íntegra:



Como o senhor vê esse movimento de grandes estrelas saírem sem cordas no Carnaval?

Toda e qualquer ação dentro do Carnaval que atue na direção de permitir mais acessos, abrir mais à participação, é sempre bem-vinda. Mas acho que a gente tem que olhar as coisas exatamente como elas são. E aí me parece que isso está surgindo… Eu não duvido das intenções pessoais de ninguém,
mas aí me parece que está acontecendo uma troca. A questão central é reorganizar a lógica dos desfiles, que nesse momento obedece exclusivamente aos interesses de mercado. E aí estou falando fundamentalmente da fila. Não faz sentido que essa fila empurre para determinados horários instituições
do Carnaval que são verdadeiros monumentos, como o Trio Elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar ou os afoxés. Da maneira como está sendo feito, é absolutamente prejudicial à festa. Na realidade, hoje quando você negocia um bloco, está vendendo um lugar na fila, porque isso tem a ver com a dimensão midiática, espetacularizada da festa. Dependendo do horário que eu passo em frente às câmeras, isso aumenta ou diminui meu capital simbólico na hora de disputar o mercado. Se há uma disposição de se fazer algo diferente para o Carnaval, vamos fazer o que é certo. O Carnaval é a mais importante manifestação do patrimônio imaterial da cultura baiana e desgraçadamente vem sendo cuidado como se fora apenas um fato de mercado. Como a cultura acaba em muitos momentos produzindo renda, emprego, ela terminou virando importante. Essa ideia é muito perigosa. Cultura é importante porque é cultura, educação é importante porque é educação, saúde é importante porque é saúde, não precisa se explicar isso. O que é assustador é a maneira como a prefeitura trabalha, como se fosse mais um a disputar o mercado. Quem tem poder de polícia sobre a festa, no sentido de que pode organizá-la, pode determinar seus horários, a ocupação do seu espaço, é justamente a prefeitura. E ela simplesmente abre mão disso.

Como o senhor analisa a atuação do Conselho Municipal do Carnaval?
Infelizmente, com respeito a muita gente séria que atua ali, é uma farsa. O Conselho é formado por uma série de instituições que nem existem mais. Você conhece algum cronista carnavalesco? Isso existiu até os anos 60… E no entando ainda há no Conselho um lugar para a Associação baiana de Cronistas Carnavalescos. Você conhece algum clube social na Bahia que promova bailes de Carnaval? Pois eles continuam, através de uma associação de clubes carnavalescos, donos de um lugar no Conselho. Ou seja, o Conselho não representa a realidade da festa. E por conta disso não tem legitimidade para organizá-la. Nós vivemos uma situação absolutamente esdrúxula, já chega. É preciso deixar claro que a discussão não é contra o mercado, mas é o mercado quem tem que estar subordinado ao Carnaval, e não o contrário. Os artistas, as estrelas, têm que entender que foi o Carnaval que os fez grandes. Não foram as grandes estrelas que fizeram do Carnaval uma grande festa, porque ela já era uma grande festa. Essas inversões são um problema que precisa ser enfrentado, e só pode ser enfrentado com política cultural, com governança democrática e transparente, para discutir todas as questões. Por exemplo, não faz sentido ter um Conselho de Carnaval que não discuta abertamente com os moradores dos lugares onde a festa se realiza mecanismos de compensação. Tem formas? Tem. Esses moradores podem ter um benefício fiscal qualquer do ponto de vista dos impostos urbanos para compensar o incômodo que alguns possam sentir, e que evidentemente sentem. Você tem uma limitação do seu direito de ir e vir. O Conselho não tem capacidade para fazer isso. Não expressa nem o conjunto de atores, muito menos o conjunto de problemas.

Que novo modelo poderia ser pensado para ordenar os desfiles?

Você poderia montar um desfile em cima de critérios artísticos. Por exemplo, é possível lançar editais determinando a forma de organização dos desfiles a partir da própria diversidade do carnaval. Você ter alternativamente blocos de trio, blocos afro, afoxés, trios independentes, blocos de travestidos, etc, etc. O lugar na fila pode ser disputado a partir de projetos para o Carnaval. Uma das perversidades que esse mercado desregulado provocou é o empobrecimento plástico da festa. Acabaram-se as fantasias, os blocos hoje desfilam com os abadás, que são outdoors ambulantes. Não precisa ser dessa forma. O projeto de melhor indumentária, de fantasia mais interessante, com mais riqueza plástica, pode ser aquele que vai desfilar na frente. Não pode continuar sendo o que tem mais bala na agulha e muito menos vir com essa história mentirosa, desrespeitosa, de que o desfile é montado com base na ordem de antiguidade… Se fosse assim, quem desfilaria primeiro seria a Mudança do Garcia, que é dos anos 30, e depois os Filhos de Gandhy, que é de 1949. O que as pessoas não conseguem perceber é que quanto mais empobrecido esteticamente for o Carnaval, pior para o negócio. O negócio se tornou um grande negócio porque a festa era grande, diversa, múltipla. Se você a empobrece, o próprio negócio começa a se ressentir.

Como o senhor vê um modelo de negócio no Carnaval paralelo aos blocos de trio que incluísse os trios sem cordas? O senhor acha isso possível?

Tem uma coisa genial nisso tudo, o Carnaval é uma festa com uma capacidade de produzir soluções impressionante. Tá na medida inversa da incompetência dos gestores públicos que cuidam dela. Quanto mais incompetentes os gestores, mais o Carnaval tem que fazer para continuar sendo a nossa grande festa. Foi assim com o trio elétrico, em 1950. Caetano Veloso é precioso quando compreende o trio elétrico como uma solução estética que o povo da Bahia encontrou para produzir alegria, para enfrentar as suas agruras. O Carnaval continua produzindo essas soluções. Esse é um projeto interssante, mas não sei como vai experimentar desdobramentos, porque essa lógica (dos blocos de trio) dos últimos 20, 30 anos, em que o mercado veio se estabelecendo, é uma lógica muito forte. Mas acho que é possível sim que esses patrocínios continuem a existir mesmo que as cordas se desfaçam do ponto de vista da lógica contemporânea que inspira a ideia de corda.

As cordas sempre existiram no Carnaval da cidade?

A corda sempre existiu, ela não é uma invenção do mercado. O cordão era exatamente um grande bloco, era uma batucada que cresceu muito, se organizou, e para o desfile você punha a corda justamente para garantir alguma uniformidade, para organizar um pouco. Com a emergência do mercado, a corda se transformou num elemento fundamental para definir quem comprou e quem não comprou. A corda na realidade vende menos Carnaval e mais segurança, porque eu posso estar de fora e ouvir a Ivete, o Chiclete… A alegria não está contida na corda, até porque se não houvesse o lado de fora, o lado de dentro seria sem graça. Essa simbiose é fundamental. Até os anos 70, dos blocos grandes, só o Jacu saía sem cordas. Até os blocos dos setores populares, que vinham de todos os bairros, da Península Itapagipana, do Garcia, do Tororó, da Liberdade, todos tinham corda. Então o problema não é exatamente a corda, mas o que ela significa. Essa equação espaço privado x espaço público é difícil de ser enfrentada, mas não é impossível, desde que seja analisada com alguma inteligência.

Como essa questão poderia ser enfrentada?

Com um gesto muito simples você ampliaria substantivamente o espaço reservado ao folião pipoca, sem alterar a própria lógica contemporânea da corda. Os blocos de trio inventaram um equipamento e o agregaram ao seu desfile, é o famoso carro de apoio. O carro de apoio nada mais é do que um palanque para papagaios de pirata, aquele monte de gente que sobe para ficar dando adeus, e é um equipamento que tem banheiro e bar. Vamos combinar que o Estado já faz um investimento forte nos banheiros públicos. Comida e bebida não é exatamente um problema na festa, ao contrário, você tem aí um exército maravilhoso de 30 mil ambulantes. Os blocos poderiam contratá-los para que circulassem por ali com pequenos carrinhos.
Vamos combinar que aqueles que se acham belos e famosos para ficar dando adeus não fazem falta ao Carnaval. Então se você tirar o carro de apoio, faça a conta. Um carro de apoio tem em termos de comprimento entre 25 e 30m. Entre a Ondina e a Barra você tem aproximadamente 4Km. Se você tiver aí 30 carros de apoio, você tem 900m, bote aí mil metros. Se eu tiro o carro de apoio, você ganha mil metros para o povão pular atrás dos trios, sem grandes alterações, inclusive sem nenhum impacto do ponto de vista cultural para os blocos. Por que não faz isso? Porque isso significa interferir no produto bloco, e ninguém vai interferir no produto bloco, porque quem organiza o Carnaval hoje são os principais donos do produto bloco. Então quem é que pode chegar e dizer ‘Epa, vamos reorganizar?’ É o Estado, é a Prefeitura. E por que é que não faz isso? Essa é uma pergunta que não quer calar. A gente costuma em ano eleitoral fazer perguntas aos candidatos, mas desgraçadamente o Carnaval não compõe o repertório de perguntas porque os fenômenos da Cultura normalmente não são assumidos nos debates como coisa séria. Para Salvador, essa é uma das questões centrais, junto com as questões de ordem social, o extremo grau de desigualdade em que nossa população vive. Normalmente os candidatos aos cargos eletivos costumam se referir à cultura com um senso de mesmice impressionante. ‘Nossa cultura é muito importante, a Bahia é conhecida pela sua cultura’, mas se você perguntar a ele: sim, mas o que é que você vai fazer em relação a isso? Ele não saberá lhe dizer, porque não é importante… O prefeito não entende de políticas culturais.

Recentemente, João Henrique disse numa entrevista que não pode intervir no Carnaval, por ser uma festa espontânea…

Confesso que não sei de onde ele tirou isso. Deve ser um distanciamento historico em relação a festa, ele nunca deve ter participado. Deve ser isso. Não há nada que tenha um grau de espontaneidade que impeça a prefeitura de disciplinar, de organizar, de regular. O prefeito há alguns anos fez um apelo público às estrelas do Carnaval para que não abandonassem o circuito do Campo Grande. Um apelo público? Quem é que determina onde os blocos vão sair? É o mercado ou é ele, prefeito, que tem o mandato público para tomar conta do espaço? E às vezes são medidas simples, mas que mexem com os grandes interesses. Essa coisa da ordem do desfile é simples de você fazer, é simplérrimo. E a questão do espaço público é complicada, mas existem formas de resolver isso. Você pode perfeitamente criar um terceiro circuito.

Onde esse circuito funcionaria?

Isso vem sendo falado há algum tempo, mas nunca foi discutido com alguma seriedade. Esse terceiro circuito só faz sentido e só dará certo se você reorganizar os desfiles. Porque é óbvio que as pessoas querem ver as grandes estrelas. E é óbvio que irão para onde elas estiverem. Se você reorganizar
 os desfiles e dizer que domingo de tarde o Chiclete estará no circuito Barra, Ivete estará no circuito da Avenida e Durval estará no novo circuito, aí elas irão. O Comércio me parece um circuito que tem sentido, porque ele tem uma dimensão territorial que não é desconhecida da festa, você pegaria ali do Mercado Modelo até o Mercado do Ouro, isso seria absolutamente possível. Do ponto de vista da infra-estrutura, é muito interessante, porque se liga aos outros dois. Dá para ir para a Barra pela Contorno e do Mercado Modelo você se liga ao circuito do Centro pela ladeira da Montanha, pelo Largo Dois de Julho. Isso é importante por questões de segurança, policiamento, limpeza, tudo. Essas coisas são possíveis de serem organizadas.

E qual é sua opinião sobre esse circuito privado para os blocos de trio que artistas como Durval Lelys já defendem há algum tempo?

Olhe, acho que quanto mais espaço a cidade puder produzir, melhor. Agora, isso não é Carnaval de Salvador, não é. Porque o Carnaval tem uma territorialidade que não pode ser desconhecida. Você não pode desterriolizar a festa. Eu não imagino, nem acho que as pessoas se imaginem, brincando carnaval na Paralela. Se querem fazer alguma coisa do gênero, acho que é uma questão de se discutir com a prefeitura, com o governo do Estado…
Agora isso não tem nada a ver com o Carnaval. O Carnaval tem uma relação direta com a cidade. Se você fizer uma fotografia aéra da festa, você tem uma grande parte da malha urbana que está absolutamente imbricada com o Carnaval. A festa não é só o circuito, ela funciona como a casca de uma cebola, tem várias camadas. A festa acontece em vários momentos antes de você chegar ao seu epicentro que é ali ao lugar onde estão passando os trios elétricos. O estacionamento, as paradas dos ônibus, as barracas que estão ali mais pra fora. Esses lugares têm manifestações estéticas completamente distintas. Se você vai ali nas barracas, é um outro som, é o reggae, é o pagode, é o arrocha; se você vai pro trio, é outra coisa. Isso é de uma riqueza que eu fico espantado como se despreza. Então essa é uma configuração única. É a mesma coisa de quando eles dizem “O Carnaval da Bahia está sendo exportado”. É uma expressão que eu entendo do ponto de vista do mercado, mas ela é infeliz. Você não exporta o Carnaval da Bahia, você exporta códigos do Carnaval. O código bloco de trio é exportável, pode perfeitamente ser reproduzido em qualquer lugar. Você fecha uma rua de um lado a outro, constrói camarotes ao longo das duas margens e põe um equipamento móvel com pessoas que pagam para estar ali desfilando ou vendo. É um Carnaval. Agora fotografe de cima. O resto da cidade continua sua vida. Fotografe o Carnaval da Bahia e você vai ver que não.

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