O
pesquisador Renan Quinalha, autor do livro Justiça de Transição:
contornos do conceito, publicado neste ano em parceria das editoras
Dobra Editorial e Expressão Popular, acredita que o Brasil paga o preço
por ser o último país da América do Sul a instaurar uma Comissão
Nacional da Verdade. Os vizinhos, como Chile, Uruguai e Argentina, que
também passaram pelo processo de ditadura militar já estão julgando e
condenando os autores de crimes.
O atraso de 30
anos, segundo Quinalha, traz peculiaridades ao processo brasileiro, como
a dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de informações
novos sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período de
tempo já transcorrido. Confira abaixo entrevista com Quinalha.
Brasil de Fato – Como você avalia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) até aqui?
O pesquisador da USP Renan Quinalha - Foto: Fora do Eixo |
Renan Quinalha –
Apesar de já transcorrido metade do prazo de seu funcionamento, é
bastante difícil fazer um balanço mais detido das atividades da Comissão
Nacional da Verdade. A maior parte das investigações da CNV está sendo
realizada sob sigilo e sem maior diálogo com a sociedade, então faltam
elementos para informar uma análise dessa natureza. De vez em quando, na
mídia, aparecem notícias sobre alguma descoberta, normalmente
envolvendo os casos mais notórios e conhecidos. Pode-se dizer que a
Comissão Nacional da Verdade chega atrasada, em torno de 30 anos após o
final da ditadura. Isso acarreta algumas peculiaridades devido a esse
contexto histórico e institucional diferenciado. A principal delas é a
dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de informações novos
sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período de tempo
já transcorrido. Assim, ao contrário de suas congêneres em outros locais
do mundo que priorizaram violações a direitos humanos (geralmente
direitos civis e políticos), a Comissão da Verdade brasileira promete
menos novidades e impactos de ineditismo, sobretudo porque os familiares
e algumas iniciativas oficiais de busca da verdade já conseguiram
produzir uma quantidade razoável de informações sobre o passado. Mas
algumas questões fundamentais, como o paradeiro dos desaparecidos
políticos e os nomes dos autores desses graves crimes, ainda precisam
ser respondidas.
Assim, sem deixar de fazer o
embate político com as pastas militares para ter acesso pleno aos
arquivos da ditadura e avançar na apuração das violências, uma das
maiores tarefas da Comissão Nacional da Verdade será romper com a
tentação da “teoria dos dois demônios” e suas variações, assumindo
claramente seu papel de dar voz às vítimas, registrar o trabalho já
feito pelos familiares e, sobretudo, oficializar a versão desses setores
diretamente atingidos. Para isso, deve também trabalhar do modo mais
aberto,transparente, participativo e público possível, evitando cair na
concepção equivocada, a meu ver, de que o grande trabalho da Comissão se
resume a um relatório final, perdendo de vista que o processo da busca
da verdade já é reparador por si mesmo se feito de modo inclusivo e
cuidadoso com as vítimas. A CNV pode fazer um grande relatório final e
com abertura pra sociedade durante o processo, esses objetivos não são
excludentes entre si. Nessa linha, o sigilo deve ser exceção, nos casos
em que a publicidade pode atrapalhar as investigações, mas não a regra.
Em
palestra no seminário Memória Digital, por ocasião da digitalização dos
arquivos do Deops de São Paulo, Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador da
Comissão Nacional da Verdade, pediu paciência e confiança na CNV,
comparando-a aos outros processos de comissões da verdade ocorridos na
América do Sul. Como você faria essa comparação? Quais as semelhanças e
diferenças entre a CNV brasileira e as que existiram nos países
vizinhos?
É perigoso fazer comparações entre os
países ignorando as determinações de correlações de força locais, as
particularidades de cada experiência e, sobretudo, o período escolhido
para a comparação, sobretudo em um tema tão crítico como o da justiça de
transição. De forma geral, os países do Cone Sul fizeram comissões da
verdade logo após os primeiros momentos da transição democrática.
A
Argentina, por exemplo, instituiu uma Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas (Conadep) ainda em 1983, tendo sido um dos
primeiros atos do Presidente Raul Alfonsín depois de sua posse. O Chile
criou a Comissão Nacional da Verdade e da Reconciliação em 1990, por ato
do Presidente Patricio Aylwin Azócar, logo após o final da ditadura
comandada pelo general Augusto Pinochet. Hoje, esses países estão
julgando e condenando seus torturadores, enquanto nós, depois de 30
anos, ainda estamos tentando construir a verdade sobre o período, muitas
vezes tendo de pedir licença para acessar a documentação dessa época.
Esse tipo de comparação, que denuncia de forma gritante nosso atraso em
relação aos nossos vizinhos e as tarefas que ainda temos de cumprir para
melhorar nossa democracia, me parece mais interessante para o momento
em que vivemos. A era da paciência já durou bastante, agora é preciso
mobilização para cobrar do Estado brasileiro não só a verdade, mas o
cumprimento da decisão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos que
condenou o Brasil a remover os obstáculos jurídicos para punir os
torturadores, em especial a Lei de Anistia de 1979.
Paulo
Sérgio Pinheiro disse, ainda, que não vê necessidade na prorrogação do
prazo da Comissão Nacional da Verdade. O que você pensa a respeito? Como
você interpreta essa posição do atual coordenador da CNV?
Por
um lado, é fato que um dos requisitos para o bom funcionamento de uma
Comissão da Verdade, conforme as experiências internacionais sugerem, é
um prazo definido e não muito prolongado de tempo dos trabalhos. Essa
definição do prazo ajuda a racionalizar as atividades, tornar as
investigações mais objetivas e permite uma resposta rápida à sociedade,
que já esperou muito tempo para conhecer o seu passado. Mas não se pode
admitir que esse tipo de trabalho seja feito às pressas. A presidenta
Dilma demorou para nomear os membros da CNV. Antes de iniciar
efetivamente as investigações, os comissionados precisaram discutir o
regimento interno e o plano de trabalho, além de dividir as tarefas,
formar a equipe de assessoria e construir o entrosamento necessário para
dar conta das tarefas estabelecidas na lei. Tudo isso atrasou o
funcionamento efetivo da CNV. Considerando a amplitude territorial (todo
o território brasileiro) e o largo período temporal (1946 a 1988, ainda
que o foco principal seja de 1964 a 1985), é razoável prorrogar esse
prazo por um pouco mais de tempo, para que o trabalho seja feito com a
profundidade que esse tema merece.
O
Levante Popular da Juventude e outras organizações reunidas no Comitê
Paulista pela Memória, Verdade e Justiça exigiram a realização de
audiências públicas, a entrega de relatórios parciais e a prorrogação
dos prazos, entre outras medidas. Como você avalia essas reivindicações à
luz dos objetivos da CNV?
São
reivindicações importantíssimas, porque baseadas em constatações
inegáveis sobre o funcionamento atual da CNV e em críticas construtivas,
que expressam o acúmulo político de setores fundamentais do movimento
por verdade, memória e justiça em nosso país. A CNV ainda tem muito
trabalho pela frente e precisará de todo o apoio social possível. Então é
recomendável que saiba apreciar e acolher demandas legitimamente
formuladas pela sociedade civil organizada.
Que papel poderia e deveria, na sua visão, desempenhar a Comissão Nacional da Verdade?
A
proliferação de Comissões da Verdade estaduais, municipais, em
universidades, sindicatos, associações de classe e em outros espaços
guarda um potencial enorme de capilarização dos trabalhos da CNV, que
pode contar com setores da sociedade civil organizada para repercutir
essa pauta. Mas, para isso, a CNV precisa assumir um papel efetivo de
coordenação, a fim de evitar desperdício de energias e duplicidades de
trabalho. Além disso, a Comissão precisa fortalecer e legitimar o cada
vez mais forte movimento por verdade, memória e justiça em todo o país,
abrindo-se mais à participação efetiva deste e tomando partido nas
disputas travadas com os setores mais conservadores ainda saudosos da
ditadura. Essas mobilizações serão importantes não só para a construção
de uma nova narrativa histórica para o país, mas também para acumular
forças para rompermos a impunidade consagrada hoje na interpretação que o
STF deu à Lei de Anistia de 1979.
É verdade que a
Comissão foi constituída e negociada em um processo marcado por uma
série de tensões e ambiguidades, típicas da transição controlada
brasileira, mas, sem dúvidas, ela foi produto de uma conjuntura
internacional favorável e de uma intensa mobilização de setores cada vez
mais amplos da sociedade interessados em passar a história desse
período a limpo. E essa mobilização transcende o trabalho e os limites
da própria Comissão. É fato que nem todas as limitações existentes podem
ser consideradas como de responsabilidade exclusiva da própria
Comissão, isso deve ser frisado. Os maiores bloqueios ao avanço do
trabalho de verdade e justiça em nosso país ainda estão postos no campo
da lógica da governabilidade e das regras institucionais ainda pouco
democráticas da política brasileira. Mas a CNV precisa contribuir para
romper com esses limites e não para reproduzi-los.
Renan
Quinalha é pesquisador da USP, autor do livro: Justiça de Transição:
contornos do conceito, publicado neste ano em parceria das editoras
Dobra Editorial e Expressão Popular.
Foto: Marcelo Camargo/ABr
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