18 de março de 2018

O corpo se foi, mas o sonho resiste


Pautas do movimento negro e homenagens à Marielle Franco marcam o último dia da Tenda Sem Medo no FSM 2018


Texto: Thídila Salim


O terceiro e último dia (16) da Tenda Sem Medo no Fórum Social Mundial (FSM) manteve sua programação original, porém, todas as atividades da tenda foram marcadas por menções e homenagens a ex-vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, morta à tiros nesta quarta-feira (14), por volta das 21h30 no centro do Rio de Janeiro. O dia final do evento foi aberto com uma grande roda de conversa feminista Mulheres Sem Medo, com a participação de Paula Coradi, executiva nacional do PSOL, Marcela Prestes, militante feminista contra a violência obstétrica, Andrea Zhouri da organização Brigadas Populares, Sandra Siqueira do coletivo Lemarx, entre outras convidadas significativas do movimento feminista nacional. A discussão foi aberta a todas as mulheres presentes na tenda, que tiveram tempo de contribuir com a roda expondo pensamentos e críticas. A atividade foi construída para trocar experiências e informações sobre a pauta feminista nos movimentos sociais e organizações políticas do Brasil e do mundo. Paula foi a primeira das convidadas a se manifestar e iniciou sua fala prestando homenagem a Marielle: “Não tem como o espaço não ser sobre isso”. O principal assunto girou em torno da mulher negra na sociedade, também foi discutido a violência obstétrica, leis de atentado a vida das mulheres, lesbofia, entre outros temas.



A segunda atividade do dia foi a mesa Vamos de Preto, organizado pelo coletivo VAMOS, composta pelo professor Hélio Santos, presidente do Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD), a escritora e doutora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Denise Botelho, o deputado estadual de Pernambuco, Edilson Silva (PSOL), o presidente do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Bahia, Fábio Nogueira, e Winnie Bueno, participante da Rede de Cyberativistas Negras. O coletivo já atua em mais de seis estados brasileiros, trabalhando o empoderamento negro. O tema da mesa foi ‘Poder Negro: Desafios e Perspectivas’, onde foram discutidas uma série de pautas do movimento negro na política e na sociedade, como a conquista pelo poder, o direito à cidade e a descriminalização das drogas. Silva expos críticas ao próprio partido, lançou seu descontentamento político com a subcategorização das questões raciais: “Não pode ser um debate diluído nas outras pautas”. Denise foi a protagonista da noite, recebida pelo público alvoroçado com muitas palmas.  Os espectadores tiveram um breve tempo para tirar dúvidas e fazer perguntas.


A tenda também serviu de espaço para o lançamento do livro de poesias Fiz da Minha Senzala Poesia, da escritora Joy Thamires. O encerramento do evento se deu com manifestações artísticas, performances teatrais, de dança, poesia e a tão aguardada apresentação da Drag Queen Brenda Barbiere, que emocionou o público com a mensagem de apoio a causa de Marielle ao final do show.



A revolução é uma mulher preta

A roda de conversa feminista na Tenda Sem Medo começou com um debate sobre as leis de atentado a vida das mulheres, colocado por Paula Coradi, executiva nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Paula deu início a seu discurso prestando homenagem a ex-vereadora Marielle Franco, recitando um poema. A executiva manifestou que era impossível não mencionar o caso tendo em vista o assunto que seria debatido na tenda. Paula defende o feminismo negro e, sendo a ex-vereadora negra, questionou o ocorrido: “Se ela fosse branca isso aconteceria com ela?”.  Para além das manifestações de indignação e tristeza, Paula levantou uma discussão sobre as “leis de atentado a vida das mulheres”, afirmando ser impossível fazer uma análise de conjuntura sem falar do protagonismo feminino. Para exemplificar sua fala, ela destacou a atuação das mulheres em grandes eventos de mobilização no Brasil como o Fora Cunha, as reivindicações contra a PL5069 e contra o golpe de 2016.

Paula aproveitou o caso Marielle para destacar seu descontentamento, não admitindo discutir o feminismo sem um recorte de raça, classe e gênero: “Se a gente não conseguir se colocar dentro dos espaços feministas sem ter isso de uma forma muito consciente, nós estaremos deixando para trás milhares de mulheres. Para mim não importa um feminismo liberal que diz que eu tenho direito sobre o meu corpo se a minha companheira negra está morrendo”. Paula ainda trouxe dados do Atlas da Violência 2017 como argumento. O estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que entre 2005 e 2015 houve um aumento de 7,5% na taxa de homicídio de mulheres do Brasil. Porém, o estudo também mostrou que houve uma retratação de 5,3 % entre 2014 e 2015. Ainda assim, a análise não foi animadora para as negras, pois no exame do caso constatou-se que não houve redução de 7,4% nos dados de mortalidade para essas mulheres, pelo contrário, o número de mortes aumentou 22%.

Muitos posicionamentos e discussões foram colocadas, porém, todas se voltaram em algum momento para mulher negra. Marcela Prestes, militante feminista contra a violência obstétrica, trouxe o tema das agressões cometidas durante o parto e dialogou sobre a cultura do estupro. Marcela contou já ter sofrido as consequências de um parto violento no nascimento do seu primeiro filho. Segundo ela, a maior parte das agressões ocorrem nos serviços públicos de saúde, mas o privado também não é poupado disso. Ao falar sobre a cultura do estupro, Marcela retratou que as mulheres negras são as mais atingidas historicamente por estes costumes: “São corpos que historicamente são acometidos com essa cultura, mas isso não acontece por acontecer. São corpos que as pessoas acreditam que eles mereçam ser violados”.  Também falou sobre o procedimento de episiotomia, uma incisão realizada na área muscular entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto, e o “ponto do marido”, um ponto realizado ao final da sutura da episiotomia em que se aperta a entrada da vagina com o argumento de aumentar o prazer do marido durante a relação sexual. Ela tratou estes procedimentos como atos de violação contra o corpo da mulher. A militante informou que não há nenhum embasamento científico que justifique a prática da episiotomia, e o ponto do marido impacta na vida sexual da mulher pós-parto, com a possibilidade da ocorrência de dor durante a relações e sangramentos, de acordo com estudos realizados por Sueli Carneiro, historiadora e fundadora do Geledés –Instituto da Mulher Negra.

Também houve destaque para discussão sobre a lesbofobia, introduzida por Rubi Santos, companheira do PSOL em Irecê. Ela manifestou tristeza ao dizer que além do recorte de raça, as lésbicas são agredidas mais intensamente, trazendo os estupros corretivos como exemplo. Ainda destacou que a maioria das agressões provém da própria família, e denunciou as altas taxas de suicídio e a negligência e desinformação dos profissionais de saúde para tratar o bem-estar sexual dessas mulheres. “Eu já passei por uma violência que me orientaram a usar plástico de cozinha ou uma sacola plástica, em um serviço particular”, contou Rubi.

Outros assuntos foram pautados durante a roda, mas todos caíram no recorte de raça, como o debate contra a criminalização do aborto, defendido pelas convidadas sob o discurso de que, mais uma vez, as mulheres negras são as mais atingidas com essa proibição.
O debate foi aberto a outras mulheres presentes na tenda, que expuseram seus questionamentos e dúvidas. Uma das voluntárias, não identificada, expressou sua revolta enquanto mulher negra vulnerável às agressões discutidas, fazendo ligação a morte de Marielle: “Eu quero ser reconhecida enquanto eu estiver viva”. Ao final da roda, todas as mulheres presentes fizeram saudações a Marielle coletivamente, gritando “Marielle presente, agora e sempre! ” e “Aqui, está, mulheres sem medo, sem medo de lutar! “.



Afronta política, triunfo e arte


O coletivo VAMOS organizou a mesa ‘Vamos de Preto’, terceira atividade da programação do último dia da Tenda Sem Medo. A mesa contou com a participação de figuras ilustres para a militância negra, como a doutora Denise Botelho, escritora e professora da Universidade Federal Rural do Pernambuco (UFRPE), o presidente do Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD), Hélio Coelho, o deputado estadual de Pernambuco, Edilson Silva (PSOL), o presidente do PSOL na Bahia, Fábio Nogueira, e Winnie Bueno, participante da Rede de Cyberativistas Negras. A mesa foi montada na intenção de discutir o empoderamento negro na política e na sociedade, com o tema ‘poder negro, desafios e perspectivas’.

Silva abriu o debate apresentando o coletivo e pautando possíveis articulações políticas em favor da população negra do país. Ele citou que o movimento já atua em mais de seis estados do Brasil e que a plataforma não se pretende a curto prazo, foi criada para ser suprapartidária.  O deputado de Pernambuco criticou os partidos de esquerda, inclusive o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), do qual faz parte. Denunciou que mesmo nestes espaços mais coniventes com as causas sociais, o negro ainda sofre com a exclusão: “É como se nós, negros, tivéssemos um limitador que impõe ‘você só pode até aqui’. Somos proibidos de ousar sermos oficiais da nossa luta”.  Silva disse que não pode mais ser permitido que as pautas do movimento negro sejam tratadas como “subpautas”, que sejam “diluídas” em outras pautas. Diante disso, ele abordou questões como o direito à cidade e a descriminalização das drogas.

Ao discursar sobre as tramas, Silva não pode deixar de lembrar do caso de Marielle. Ele falou sobre o racismo dentro dos espaços políticos e mencionou como é recepcionado por seus colegas de trabalho, cuja maioria são brancos: “A cara de espanto é impressionante quando aparece um negro de paletó e com o broche de deputado”, disse sobre a reação dos colegas quando o veem em reuniões administrativas. Ao relatar o incômodo, desferiu que a ex-vereadora era incômoda no espaço que ocupava, relembrando suas lutas diárias pela população negra: “Se Marielle não tivesse existido, nós teríamos que inventá-la. Ela foi um prêmio que a esquerda ganhou e, mesmo assim, teve dificuldade para ser candidata ao senado no Rio de Janeiro”.

Denise Botelho foi a segunda oradora e a estrela da mesa, recebida com muitos aplausos pelo público alvoroçado. Começou seu discurso levantando a seguinte questão: “O que estamos chamando de poder?”. Ela trouxe a importância de valorizar o poder em espaços comuns de perpetuação da cultura ancestral, fora dos espaços políticos. Citou as ialorixás e os babalorixás, mães e pais de santo, presentes em religiões de matriz africana, como exemplos do exercício desse poder, dando destaque para o protagonismo das mulheres nesses espaços: “A grande base do povo negro é base da religiosidade de matrizes africanas. A maior parte do poder dos terreiros de candomblé está na mão das mulheres. Se é para falar de poder aqui, já digo que o poder que eu quero é o que esteja na mão das mulheres”.  Diante disso, mais uma vez, Marielle foi citada, usada como exemplo. Denise afirmou que quando uma mulher negra consegue ascender, ela movimenta toda a sociedade. Sendo assim, ela mencionou o desejo de Marielle em concorrer ao senado em busca de alterar o ambiente misógino e racista do parlamento. Ela expôs a necessidade de trabalhar na perspectiva educacional para ser possível colocar o poder nas mãos dessas mulheres. Sendo assim, a doutora trouxe a problemática do racismo religioso e a relação com a educação fundamental: “Existe a mais de uma década uma lei que diz que a história e cultura afro-brasileira e africana deve estar nos nossos livros. Para nós isso deveria ser também uma prioridade na lógica do poder. Se eu quero uma mulher no poder é preciso pensar que desde a formação eu tenho que trazer elementos que vão fortalecer essa jovem até ela se tornar uma mulher e poder estar competindo nessa lógica. É um dos maiores problemas que temos hoje [o racismo religioso]. As nossas crianças, meninos e meninas, são doutrinadas numa lógica cristã, na qual são obrigadas a rezar o pai nosso cotidianamente. Quando as nossas manifestações estão dentro das escolas ainda são folclorizadas”.

Todos os manifestantes expuseram suas pautas em relação ao movimento negro, e de uma forma ou de outra, se encontraram em seus discursos igualitariamente, principalmente ao retratar o assassinato da ex-vereadora e sua representatividade. Winnie, relatou que por muito pouco não se ausentou a mesa, pois ficou muito abalada com o falecimento da colega, mas foi convencida pelo professor Coelho. Coelho também foi destaque dentre as apresentações. Ele discursou sobre os males que o racismo causa no Brasil e lançou a proposta de investir na atuação de vinte mulheres negras e feministas no congresso nacional. O público ficou entusiasmado e não economizou aplausos.

A noite também foi marcada pelo lançamento do livro de poesias Fiz da Minha Casa Senzala, de Joy Thamires, 24. A jovem que não teve a oportunidade de completar o ensino médio, apresentou sua obra após o fim da mesa Vamos de Preto, chamando a atenção dos presentes com a interpretação de uma de suas poesias. Joy foi agraciada pelos espectadores da tenda e convidados da mesa, que a parabenizaram pela conquista. A jovem escritora debateu um pouco sobre a representatividade da mulher negra em sua fala, expressando como aquele momento era significativo para si. Chegou a mencionar que toda a confecção do livro, foi realizado por mulheres negras, aspecto que a moça fez questão de garantir no processo de produção.

O encerramento da tenda contou com a realização de um sarau, com performances teatrais, de dança e poesia. Dentre todos os artistas que se apresentaram, o prêmio de estrela da noite foi para a Drag Queen Brenda Barbiere. A drag performou algumas músicas que conversaram com todos os assuntos debatidos nas atividades da tenda, como as críticas que foram colocadas ao machismo, LGBTfobia e o racismo. Dentre as músicas utilizadas no show da transformista teve “100% Feminista”, canção cantada pela Mc Carol e a rapper Karol Conka. O fim do show emocionou a todos com um apelo feito em relação à morte de Marielle. Durante sua apresentação, Brenda exibiu placas de papel com algumas súplicas, as duas últimas diziam: “Parem de nos matar! ” e “Somos todos Marielle”.



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