Após dez longas horas de
estrada, me estabeleço em Mariana-MG para compor e ajudar na comunicação da
brigada de solidariedade promovida pela Rede Nacional de Médicas e Médicos
Populares, a equipe era composta também por uma Psicóloga. O objetivo inicial era
realizar um diagnóstico de saúde e da real situação do meio ambiente e das
populações violadas pelo desastre do rompimento da barragem de rejeitos, a
Fundão da mineradora SAMARCO.
No primeiro dia visitamos os hotéis em que estava alojada parte da população de Bento Rodrigues, distrito de Mariana que foi completamente soterrado pela lama e sumiu do mapa. A população de Bento era composta em sua maioria por pequenos agricultores familiares, que para além de perderem seus bens materiais, perderam também seus bens simbólicos, como álbuns de família, troféus, entre outros. Quando chegamos a um dos hotéis, os atingidos já conversavam em roda, na qual só fizemos pedir permissão para sentar e ouvir os depoimentos.
Escutamos
diversos relatos, entre eles: reuniões com a SAMARCO e a população de Bento em
2013 sobre algumas rachaduras na barragem do Fundão em que engenheiros da
empresa atestavam que não haveria risco de rompimento da barragem; depoimentos
de idosos, diabéticos, hipertensos comendo a mesma marmita que todo mundo, sem
nenhum cuidado com as diferentes dietas de diferentes organismos; relato de
trabalhador terceirizado da SAMARCO dizendo que soube no rádio interno que a
barragem havia rompido e que tentou contato com a população de Bento através do
celular pessoal e não obteve sucesso. Depoimento de atingido, desabrigado e
trabalhador terceirizado da Vale, trabalhando em regime de plantão e sem
conseguir dormir no hotel por causa da dinâmica de acomodação da população nos
hotéis.
No
final da tarde nos incorporamos à reunião do Movimento dos Atingidos por
Barragem (MAB) com famílias de atingidos e desaparecidos do desastre.
Depoimentos fortes e emocionantes. As famílias estão com dificuldades de acesso
a informações básicas dos desaparecidos, reconhecimento dos mortos, resgate de
objetos pessoais dos trabalhadores terceirizados mortos entre outras violações
de direitos humanos. A brigada de solidariedade da Rede Nacional de Médicas e Médicos
Populares acredita no MAB como movimento social capaz de organizar a população
afetada, e fazer o enfrentamento com o Estado e a SAMARCO por sua experiência e
método. O MAB vem sendo criminalizado, perseguido, infiltrado e espionado pela
SAMARCO justamente por sua capacidade de organização, defesa, assistência aos
atingidos e enfrentamento a SAMARCO e ao Estado. Saindo dessa reunião tínhamos
a certeza que a brigada de solidariedade deveria fazer um trabalho em conjunto
com o MAB, fortalecendo assim esse movimento.
No
segundo dia fomos a Barra Longa cidade que fica a 60 km de Mariana e foi
atingida pelo desastre. Ainda não tínhamos contato com a lama, mas na entrada
de Barra Longa isso aconteceu em uma ponte que liga a estrada à cidade e por
onde a lama passou. Fomos recebidos pelo MAB e encaminhados para almoçar em uma
casa alugada pela família que era dona de uma pousada atingida pela lama.
Depoimentos de que haviam ligado para representantes da empresa perguntando se
a lama chegaria a Barra Longa e os mesmos disseram que não chegaria; que a lama
e a SAMARCO levaram para além dos bens materiais, levaram os sonhos da família,
deixando-a, inclusive sem assistência médica e psicológica; reclamava-se também
da ocupação da cidade pela SAMARCO através do seu poder econômico, com grandes
carros, máquinas e funcionários sem muita eficácia e atenção a população.
Após
o almoço fomos encaminhados pelo MAB ao posto de saúde municipal, onde colhemos
depoimentos da secretaria municipal de saúde, da enfermeira e da médica do
município onde se relatava após o desastre um aborto de uma gravida de oito
meses, dermatoses, diarreias, dores de cabeça, doenças respiratórias,
insuficiência de profissionais de saúde no município, assim como falta de
assistência aos profissionais de saúde que estão trabalhando no município e
assistência insuficiente dos profissionais de saúde cedidos pela SAMARCO.
Saindo do posto de saúde fomos visitar a praça da cidade que fica na beira do
rio e foi coberta e destruída completamente pela lama, pisamos na lama, ficamos
trinta minutos observando e perplexos com aquela realidade, eu passei mal,
senti dor de cabeça e dificuldade de respirar, me senti em uma “Manguetown”
tóxica.
A
SAMARCO domina a cena do crime, controla o credenciamento das famílias
atingidas, invadindo a sua privacidade, acessando CPF, RG e outros dados,
controla o reconhecimento dos corpos, aluguel das casas, acomodação em hotéis.
Ouvimos relatos de tentativas da SAMARCO de fazer negociações individuais,
cooptação de lideranças em troca de benefícios individuais, criminalização dos
movimentos sociais, ou seja, utiliza as táticas mais deploráveis e manipula
toda e qualquer ação a ser tomada com os atingidos, a empresa se confunde
diversas vezes com o Estado, seja exercendo o papel do Executivo, Legislativo
ou Judiciário, Federal, Estadual e Municipal. O Estado brasileiro está ausente.
Chega ao ponto do Estado montar uma base dentro da SAMARCO ao invés de estar
atendendo a população, e de declarações e notícias feitas pelos governos
afirmando que a lama não era tóxica. Lamentável a atuação de todas as esferas
do Estado brasileiro nesse desastre. Os tentáculos capitalistas internacional
da SAMARCO invadem os três poderes brasileiros e os interesses da empresa estão
acima da população e da soberania do Estado brasileiro.
Não foi acidente! Existe
um relatório produzido pelo Instituto Prístino em outubro de 2013 e anexado ao
parecer do Ministério Público de Minas Gerais em relação ao pedido de renovação
da licença de operação da barragem que já alertava sobre os riscos de
rompimento da barragem Fundão. As direções da SAMARCO, da Vale e da BHP
Billiton precisam ser responsabilizadas criminalmente pelo desastre!
A
Samarco Mineração S.A é uma “joint-venture” pertencente a Vale S.A e a anglo-australiana
BHP Billiton, cada uma com 50% de participação. As duas empresas acionárias da
SAMARCO alegam que a SAMARCO tem sua própria direção e atua “independente” dos
seus acionários, assim a Vale e a BHP Billiton se isentam das responsabilidades
do desastre. Para refrescar um pouco a nossa memória a Justiça Federal chegou a
reconhecer fraude na privatização da Vale que aconteceu em 1997 e entre os réus
estavam a União, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social)
e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Eles foram acusados de
subvalorizar a companhia na época da sua venda.
Ressaltamos
que após esses trinta dias do desastre ambiental, nem um cálculo pode mensurar
o tamanho perante as comunidades e o meio ambiente atingido. Metais pesados
contidos na lama irão para a cadeia alimentar através da fauna, flora, solo e
águas atingidas. Acreditamos que só a organização popular pode fazer frente ao
capital que destrói coisas belas. Cabe aos movimentos sociais e instituições
progressistas juntos ao MAB fazerem trabalho de base e assim desorganizar esse
processo extrativista das mineradoras no Brasil, que para além de um modelo de
extração de minérios insustentável ambientalmente, assassina vidas e desafia a
soberania do Estado brasileiro. O horizonte de um novo dia é que ao final desse
processo as famílias e o meio ambiente sejam justamente reparados e que a Vale
seja re-estatizada!
*Caio Neves Teixeira é
militante do Coletivo Nacional de Juventude O Estopim! e fez parte da brigada
de solidariedade da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares atuando na
comunicação.
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