*Wilza Vieira Villela ( Médica, Doutora em Medicina Social )
Na década de 1980, a organização das mulheres pela saúde adquire, no Brasil grande força e visibilidade, protagonizando um intenso diálogo entre grupos de mulheres, acadêmicas feministas e profissionais de saúde. Isto favorece a construção de um conhecimento que criticamente considera a necessidade de estender os avanços técnicos em saúde ao maior número possível de mulheres no país ao lado da urgência da reflexão e do questionamento sobre a crescente medicalização dos corpos femininos. Buscava-se também problematizar os vieses de gênero presentes na formulação das práticas de saúde voltadas para as mulheres, no sentido de que pudessem atender à demanda feminista de promover autonomia através da oferta de ações de saúde que, desde uma perspectiva de educação e liberdade, facilitasse para as mulheres a (re)apropriação de seus corpos.
Este debate evidencia que o processo saúde doença das mulheres é intermediado por fatores tradicionalmente percebidos como estando fora do escopo da saúde, como a constituição de uma subjetividade a partir do lugar da opressão e os limites no exercício de direitos individuais e coletivos decorrentes deste lugar, em que pese as diferenças sociais entre mulheres. È realçada, portanto, a necessidade da incorporação da perspectiva de gênero na formulação das políticas e práticas de saúde, de modo a melhor equacionar questões relativas aos direitos sexuais, direitos reprodutivos, violência, saúde mental e trabalho das mulheres.
Ao mesmo tempo é apontada a urgência de serem produzidos indicadores que apontem, com a maior fidedignidade possível, os avanços obtidos pelas mulheres na sua luta por melhores condições de vida e saúde.
A mobilização das mulheres pela saúde culminou na formulação do Programa de Assistência Integral à Saúde das Mulheres (PAISM), em 1986, pelo Ministério da Saúde. Ao incorporar as reivindicações feministas num programa de governo, o PAISM transformou num marco no Brasil e no resto do mundo.
No entanto, o engajamento de diferentes setores do governo e de organizações não governamentais não foram suficientes para que a implementação do PAISM fosse coroada de êxito. Dentre os vários fatores que contribuíram para este fato, podemos citar os graus distintos de compromisso dos governos locais; especificidades do perfil da demanda e da infraestrutura dos serviços nas diversas regiões e mudanças no cenário político e na organização do modelo de assistência à saúde, a partir da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988. Estas dificuldades, no entanto, não reduziram a intensidade e amplitude do diálogo entre o movimento organizado de mulheres pela saúde e os representantes do Estado. Ao contrário, ao longo dos anos esta pauta foi se expandindo para incluir outros temas, como a qualidade e a humanização do atendimento, especialmente para as mulheres vítimas de violência e mulheres vivendo com HIV/Aids; estratégias de prevenção da infeção pelo HIV, de outras doenças de transmissão sexual, da violência doméstica e sexual e também da gravidez inesperada, com a disseminação da contracepção de emergência.
O Avanço no movimento de saúde das mulheres e a criação da rede nacional feminista de saúde e direitos reprodutivos
Uma das razões para o impacto positivo do movimento de mulheres no Brasil é a sua capacidade de articulação. Assim, em 1991 foi criada a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (REDE FEMINISTA DE SAÚDE) visando atender a necessidade de uma troca mais sistematizada de informações e experiências entre os diferentes grupos comprometidos com a luta pela saúde e pelos direitos sexuais e direitos reprodutivos no país. Participam da REDE FEMINISTA DE SAUDE ONGs, grupos de mulheres, núcleos universitários de estudos de gênero e feministas independentes. Através da REDE FEMINISTA DE SAÙDE as mulheres tem tido a oportunidade de participar da formulação e da implementação de políticas públicas, inserindo aí a perspectiva de gênero e o compromisso ético contra todas as formas de discriminação, seja de gênero, classe social, étnica ou sexual. Hoje, a REDE FEMINISTA DE SAUDE possui representantes em várias instancias de governo, como:
¨ Comitê Nacional e Comitês Estaduais e Municipais de Morte Materna;
¨ Comitê Nacional e Comitês Estaduais e Municipais de Saúde;
¨ Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher;
¨ Comissão Nacional de DST/Aids;
¨ Comissão Nacional de Prevenção de Acidentes e Violência.
O MonitorAMENTO DA PLATAFORMA DA CONFERENCIA inTERNACIONAL SOBRE POPULAÇÂO E DESENVOLVIMENTO RREALIZADO PELA REDESAUDE
Na medida que o governo brasileiro foi signatário da Plataforma de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD- Cairo, 1994), o movimento de mulheres se colocou como um dos parceiros privilegiados para acompanhar o cumprimento dos acordos. Neste sentido, a REDE FEMINISTA DE SAUDE foi incluída num projeto de monitoramento regional, coordenado pela Red de Salud de las Mujeres La tinoamericanas y del Caribe (RSMLAC), que teve início em 1996, composto de três etapas: um diagnóstico inicial (1996), assumido como linha de base da situação do país pré-Cairo, uma etapa de advocacy em áreas apontadas por este diagnóstico como as mais sensíveis e oportunas politicamente, e um diagnóstico final (2002) que, comparado ao primeiro, pudesse identificar avanços, recuos e lacunas.
Os diagnósticos foram realizados a partir de uma matriz de indicadores desenvolvida especificamente para este fim pelos países participantes.
O diagnóstico inicial do Brasil, produzido pelo SOS Corpo, Gênero e Cidadania, em linhas muito gerais, mostra que, apesar do avanço que representou o PAISM - cujas diretrizes, inclusive, guardam muitas semelhanças com as da CIPD - em 1996, dez anos após sua formulação, a situação de saúde da mulher no Brasil é bastante ambígua e contraditória. Por exemplo:
Ø O número médio de filhos por mulher e, consequentemente o crescimento da população estavam diminuindo, sem que tivesse sido formulada qualquer política específica para este fim;
Ø Acredita-se que esta redução esteve relacionada à incorporação das mulheres no mercado de trabalho e à ampla disseminação do uso de pílulas contraceptivas e da esterilização. Entretanto, o setor público não é principal responsável pelo fornecimento de pílulas às mulheres, que, majoritariamente a adquirem em farmácias, criando uma maior possibilidade de inadequação no seu uso. Ao mesmo tempo, embora a esterilização, naquela época, não fosse um procedimento legalmente oferecido nos serviços públicos de saúde, este setor era o responsável pelo maior volume de laqueaduras tubárias. (BEMFAM, 1996). Ou seja, havia distorções profundas no perfil de uso e de acesso à contracepção, com eventuais impactos negativos sobre a saúde das mulheres;
Ø Dezoito por cento das mulheres entre 15 e 19 anos já havia estado grávida alguma vez;
Ø Quarenta e quatro por cento do total de partos no país foram realizados através de cirurgia;
Ø Os coeficientes de morte materna variavam de 458 na região Nordeste a 60 por 10.000 nascidos vivos no sul, sendo o aborto provocado responsável 12% destes óbitos;
Ø A mortalidade infantil oscilou de 65 a 132 por 1000 nascidos vivos no sul e no nordeste, respectivamente.
Ø A cobertura de exames de Papanicolaou atingia apenas 12% das mulheres.
Ø Entre 1991 e 1994 foram reportados cerca de 12.000 de casos de Aids entre mulheres, contrastando com os aproximadamente 3.000 reportados em toda a década anterior, apontando para a rápida disseminação do HIV entre a população feminina.
Ø Apenas um serviço público realizava aborto em casos de gravidez resultante de estupro.
O que estes dados sugerem é que o exercício da contracepção não refletia uma efetiva conquista dos direitos sexuais e reprodutivos. Em decorrência deste quadro, a correção na distorção do uso de contraceptivos, com aumento no uso do condom, a orientação às jovens para prevenção da gravidez e da infecção pelo HIV, um adequado atendimento nos casos de aborto incompleto, a ampliação da cobertura da prevenção do câncer de colo uterino e ainda a formulação de uma política adequada de prevenção e atendimento à vítimas de violência sexual passaram a ser algumas das ações prioritárias a serem assumidas pelo Governo no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em parceria com as organizações da sociedade civil.
DESENVOLVENDO POLÍTICAS EM PARCERIAS PARA BUSCAR IMPACTO NOS INDICADORES DE SAÚDE
O diagnóstico realizado pela REDE FEMINISTA DE SAUDE também mostrou que os marcos legais para o desenvolvimento de ações de saúde sexual e reprodutiva é abrangente e completo, tendo o país já ratificado a maioria das convenções internacionais sobre o tema. Faltava regulamentar e desenvolver políticas específicas.
Ao lado do estímulo trazido pelas discussões pré e pós Cairo, a realização e divulgação deste diagnóstico foi um subsídio a mais na elaboração de uma agenda conjunta de trabalho entre o setor governamental e a sociedade civil. Como exemplo desta parceria podemos citar a ampliação do número de serviços que realizam abortos nos casos não puníveis, obtida a partir de um esforço conjunto de técnicos da área de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, profissionais de saúde ligados à FEBRASGO- Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia - IPAS e ONG feministas, atuando na implantação de cada serviço, fosse no treinamento dos profissionais, na sensibilização da comunidade ou no monitoramento da atividade pós implantação do serviço. Como resultado, ao final de 2002 mais de 60 hospitais realizavam atendimento a mulheres vítimas de violência dentro do estabelecido na norma técnica do MS sobre o assunto, cerca de 40 hospitais públicos realizavam abortos nos casos não puníveis e um número ainda mais expressivo utilizava a aspiração manual intra-uterina para assistir ao aborto incompleto.
Outro exemplo a ser citado foi a regulamentação, em 1998, das atividades de planejamento familiar, que estabeleceu critérios para a realização da laqueadura tubária nos hospitais públicos, processo que também contou com uma importante parceria da REDE FEMINISTA DE SAUDE e da FEBRASGO, quer na sua elaboração quanto na sua implementação e monitoramento. Ao mesmo tempo foram desenvolvidas várias iniciativas visando estimular as mulheres e profissionais de saúde para o parto normal, dada o profundo imbricamento entre esterilização e parto cesárea. Destas, a mais visível foi a campanha “Natural é o parto normal”, realizada a partir de uma parceria entre o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina e o movimento de mulheres. Complementarmente, o Ministério da Saúde mudou as normas de pagamento do parto, fazendo equivaler o valor do parto normal e do parto cesáreo, e remunerando o uso de anestesia. Vale ressaltar o importante papel desempenhado pela Rede de Humanização do Nascimento e Parto - REHUNA neste processo.
No que se refere à prevenção e assistência da infecção pelo HIV/Aids, as principais recomendações da Conferência do Cairo implementadas no país estiveram relacionadas à integração de ações de prevenção e cuidado do HIV com as demais ações de saúde sexual e reprodutiva realizadas no nível da atenção básica; acesso a testagem e aconselhamento anônimo e voluntário; e atividades para prevenção da transmissão do HIV da mulher para o feto.
O apoio da Coordenação Nacional de DST/Aids do Brasil a atividades realizadas por ONG e a participação de representantes da sociedade civil nos seus diversos comitês e comissões, aprofundou o diálogo sobre a necessidade de uma postura não sexista nas ações de prevenção do HIV e a reflexão critica, a partir de ações concretas, sobre os caminhos de construção de uma política pública voltada para a equidade de gênero.
Deve-se levar em conta que a estrutura do SUS prevê a atuação de instâncias de controle social – os conselhos de saúde – nos três níveis de decisão. Assim, a difusão das diretrizes da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e do debate a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos nos marcos da saúde e também dos direitos humanos foi outra diretriz de trabalho bastante intensa tanto durante o período 1996 e 2002, por parte tanto de setores de governo quanto das organizações não governamentais, visando capacitar conselheiras e conselheiros de saúde no sentido de pautar sua atuação pela defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos.
COMO ESTAMOS HOJE?
Apesar do constante cuidado com o monitoramento do cumprimento dos compromissos brasileiros com a plataforma da CIPD e do compromisso de algumas feministas que atuaram no Ministério da Saúde e em diferentes Secretarias estaduais e municipais de Saúde durante o período, ainda enfrentamos graves problemas e lacunas em relação à saúde das mulheres no Brasil: o perfil de uso de contraceptivos não se alterou substantivamente, apesr do aumento de uso da camisinha, as ações do programa de DST/Aids ainda não atingem a cobertura e abrangência desejada, a morte materna se mantém num patamar elevado e, mesmo com a realização de duas campanhas de intensificação de coletas de papanicolaou, e a inclusão deste procedimento na proposta do PSF, a cobertura nacional se mantém próximo dos 50%, para o conjunto de mulheres em idade reprodutiva. A oferta de testes anti hiv na gravidez não atinge 50% das gestantes, e menos que 10% são testadas para sífilis.
Ao mesmo tempo, as ações desenvolvidas pelo Programa de Saúde do Adolescente, e mesmo aquelas direcionadas pela Coordenação de DST/AIDS para esta população, embora sendo da maior importância, ainda não constituem uma política clara e consistente visando a saúde sexual e reprodutiva dos jovens. Mitos e tabus relacionados à capacidade de autodeterminação deste grupo populacional, posturas moralistas em relação ao exercício da sua sexualidade mesmo a pouca experiência tanto do setor de educação quanto do de saúde em abordar transversalmente a questão dos direitos sexuais e reprodutivos são alguns fatores que contribuem para este fato.
A divulgação da contracepção de emergência, estratégia da maior importância na prevenção da gravidez indesejada, bem como a sua oferta nos serviços públicos de saúde, ainda depende de iniciativas locais de caráter pontual, encontrando resistência mesmo entre profissionais de saúde. Gays, lésbicas, travestis e trangêneros ainda encontram barreiras para tratar das suas questões de saúde sexual e reprodutiva nas unidades do SUS, cuja prioridade organizativa continua sendo a atenção materno-infantil e que, portanto, também acolhe com dificuldades as demandas sexuais e reprodutivas da população masculina heterossexual.
A saúde mental das mulheres, que exprime sua contraface na medicalização de processos da vida como tristeza, depressão e envelhecimento continuam não sendo objeto de problematização para as práticas de promoção e assistência à saúde.
No Programa de Saúde da Família, estratégia governamental para ampliação de acesso de mulheres e jovens a serviços de atenção básica de saúde, apenas a atenção pré-natal e realização de exame de Papanicolaou são procedimentos obrigatórios relacionados à saúde sexual e reprodutiva– proposta tímida em relação ao PAISM, que, por suposto, ainda deveria ser o eixo norteador da política de saúde da mulher.
AFINAL...
A última etapa do projeto de monitoramento da CIPD revelou que, embora tenhamos tido no período 1996/2002 uma série de avanços na formulação de políticas setoriais voltadas para a saúde das mulheres, a sua efetivação ainda depende profundamente da continuidade dos esforços de articulação através das instâncias de controle social e da parceria Estado Sociedade Civil.
Ao mesmo tempo, o grau de conhecimento e reflexão das mulheres sobre seus direitos sexuais e reprodutivos incluídos na Plataforma da CIPD também precisa ser ampliado. Esta situação coloca para o movimento organizado de mulheres o desafio de expandir a discussão sobre o tema de modo a cada vez mais acrescentar ao seu discurso a fala das mulheres mais pobres e excluídas daqueles.
Existe um profundo reconhecimento da importância de aprofundar as alianças do movimento organizado de mulheres com os demais movimentos sociais, estratégia cujo acerto tem sido testificado em iniciativas como o Fórum Social Mundial, mas que ainda precisa ser intensificada.
Existe também o reconhecimento, cada vez mais agudo, da necessidade de produção de indicadores que possam aferir, com maior sensibilidade, os avanços obtidos na saúde das mulheres em nível local, apontando as lacunas para as quais seria necessário desenvolver ações de advocacy. Isto exige a continuidade de um investimento voltado para a apropriação deste tipo de tecnologia pelas instâncias de controle social, o que também representa um enorme desafio.
Finalmente, existe a necessidade de uma reflexão crítica sobre as necessidades atuais de saúde para as mulheres, frente aos avanços tecnológicos e às mudanças políticas sociais e econômicas dos últimos dez anos, de modo a podemos atualizar a nossa agenda.
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