2 de fevereiro de 2011

Por quem os sinos dobram


A modernização conservadora na Universidade de São Paulo

Por Mafê

Desde sua fundação, a Universidade de São Paulo se estabeleceu como um projeto  entortado pelo jogo de forças do seu tempo. E se algo de inadequado marcara-lhe a cara ainda no berço, foi também para segui-la em seu desenvolvimento. Idealizada como projeto liberal de formação de elites dirigentes para o país, em oposição à oligarquia imperante, fundou-se através da adesão dos mesmos liberais ao governo autoritário de Getúlio Vargas, padeceu de tecnocracia em meio à ditadura militar e sob o choque de eficiência, caiu fora da cena pública da atualidade.

Seu processo de formação institucional a fez dona de uma das estruturas de poder mais conservadoras do país. Seu reitor é escolhido pelo governador do Estado de São Paulo e, até hoje, apenas os professores titulares têm diretos políticos plenos (vale dizer que eles correspondem a pouco mais de 18% do total de professores e menos de 1% da comunidade universitária) e qualquer titulação precisa ser primeiro aprovada pela Assembléia Legislativa para depois cair na disputa interna das divisões do poder.


É essa estrutura nada porosa, nada pública, que hoje implementa mudança incrementais, fatiadas, dissolvidas, sem nenhum tipo de discussão política, e vai dando contornos a um projeto de universidade que, matizadas as diferenças dos grupos no poder, convergem entre si e vêm cair no colo da comunidade universitária.
A lógica privatista tomou conta da instituição pública. De liberais a desenvolvimentistas, trata-se hoje do governo da eficiência, da gestão por metas, do enxugamento dos quadros públicos e do uso promíscuo de verbas privadas, tudo adotado num modo contínuo, ainda que fatiado, posto como inquestionável frente as necessidades do nosso tempo. A Universidade precisa ser “eficaz”, resta saber para que.

A nova reforma dos cursos de graduação, por exemplo, que reivindica a “atualização” de seus conteúdos com base em critérios de mercado, visando a ascensão da USP nos indicadores internacionais, se impõe pela implementação de um modo de gestão financeira pautado na premiação daqueles institutos que a ela melhor se adequarem. Já que a autonomia relativa das faculdades e institutos que compõem a Universidade não permite que a reitoria reformule ou mesmo elimine cursos tidos como “obsoletos” ou “inadequados” para o “nosso tempo”, basta então achatar os repasses fixos das verbas para as unidades e operar no sistema de premiações e metas. Os rankings internacionais passam a ser usados de forma predatória pela reitoria, de modo a, literalmente, comprar a adequação das unidades.

Do outro lado da tela está a Universidade Virtual do Estado de São Paulo, o paradigma paulista da educação neoliberal. Para universalizar ou mesmo ampliar o acesso ao ensino superior é preciso que a própria universidade se altere. A graduação generaliza-se, não como expansão de projeto, mas como rebaixamento de formação, enquanto a atividade de pesquisa fica sob o controle das agencias de fomento. Diversificação dos cursos, criando formações pré-bacharelado, desvinculados da pesquisa, substituindo a educação presencial pela sedução frígida da tecnologia. Não há melhor eficiência de recursos do que implementar a educação à distãncia. Ela é a caricatura do projeto de modernização universitária.

De volta ao campus, uma pretensa otimização dos espaços segue eliminando todos os locais de formação crítica e libertária, criados no bojo da extensão univeristária e do ativismo político. Cursinhos populares de educação pré-vestibular têm suas verbas cortadas, o Núcleo de Consciência Negra, o Sindicato dos Trabalhadores e a Associação de Docentes têm suas sedes ameaçadas, além do sem número de espaços de convergência estudantil, fundamentais para a formação universitária crítica, como o Canil (Espaço Fluxus de Cultura) e o próprio Diretório Central dos Estudantes, todos passivos de eliminação sob os mesmos brados de eficiência, otimização e modernização.

E do lado de fora da sala de aula, a otimização de recursos legitima o enxugamento dos quadros públicos, adota a terceirização massiva de diversas funções e vai desembocar no absurdo de 03 de janeiro de 2011, quando 262 trabalhadores são demitidos em uma primeira lista de cortes de pessoal. Fala-se que o projeto de cortes no funcionalismo público da USP tem como meta cair de 16 mil funcionários para apenas 8 mil nos próximos anos.

A implementação desse tipo de reforma tem encontrado resistência de parte da comunidade universitária. E é por isso que assitimos nos últimos anos a fortes ataques contra ativistas na USP. Os trabalhadores e seu sindicato sofrem mais de 20 processos por realizarem greves e manifestações na luta pela isonomia salarial. Professores também estão sendo atingidos, como é o caso do professor do instituto de Ciências Biomédicas, suspenso por denunciar à imprensa irregularidades nos laboratórios de sua unidade. Há dois anos um importante dirigente sindical foi demitido e, desde setembro último, 24 estudantes estão sendo ameaçados de “eliminação definitiva” da universidade.

Os alunos respondem a processo administrativo por “praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes”, “perturbar os trabalhos escolares e a administração da universidade”, “atentar contra o nome e a imagem da universidade” e são acusados com base em um decreto da Ditadura Militar, promulgado em 1972. (Disponível em: http://www.usp.br/leginf/rg/d52906.htm). Este decreto foi instituído sob a égide do AI-5, redigido pelo ex-reitor da USP, Gama e Silva, vigora de forma “transitória” há algumas décadas e, inconstitucionalmente, ainda proíbe greves e manifestações políticas. Mais uma vez assistimos à ascensão do autoritarismo sob a justificativa dos “interesses gerais”. Para que a USP se torne eficiente, uma parte sua tem de perecer. Para adequar a Universidade aos tempos do neoliberalismo, a reitoria da USP precisa  rememorar a ditadura militar brasileira.

Mas estaríamos no melhor dos mundos se o conservadorismo fosse exclusividade da reitoria. Do lado dos estudantes, a coisa não é nada boa. Sob um fundo geral de apatia e corrida pragmática para a adequação mais ou menos eficaz rumo aos prestígios do mercado, a direita estudantil mostra a sua cara. Pela primeira vez três chapas de direita concorrem ao Diretório Central dos Estudantes e de dentro da moradia estudantil, de onde eu também vim, nasceu a União Conservadora Cristã, cujo panfleto hostentava os rostos de Marx a Obama, passando até por Chico Buarque, todos queimando num fogo infernal sob a frase: “USP: SIM; GREVE: NÃO”. Havia, inclusive, chamados para que os moradores agredissem os ativistas de esquerda mais conhecidos.

Mas o auge do reacionarismo estudantil veio encampado pelas atléticas. Além de serem patrocinadas por empresas privadas, em geral de bebidas, para produzirem suas festas no pior do estilo machista, no último INTERUNESP, principal competição de esporte daquela universidade, os estudantes criam o “Rodeio das Gordas”. Esse descalabro trata-se de ao avistar uma aluna considerada gorda (“tem que ser grande, bem grande!”), correr e montar nela. Havia regras para julgar o ganhador e as mulheres mais agressivas na sua autodefesa eram chamadas de “gordas bandidas” e valiam mais pontos.

Fechando o círculo, no caso uspiano, a reitoria tem arregimentado alunos no intuito de criminalizar os ativistas de esquerda. Eles servem como bedéis, depõem delatando nomes, provocam nos corredores, agridem mulheres e como compensação passam a ser favorecidos frente as duras regras da permanência estudantil. Frente a essa possível formação de milícias estudantis, parte da juventude de esquerda –  num ato que considero um erro de avaliação – tem preterido os espaços de democracia direta, lugares, por excelência, da formação política, em favor dos espaços mais institucionais, operando algo como uma parlamentarização do movimento estudantil. Para protege-lo, é preciso guarda-lo no congelador.

A riqueza da militância universitária, que também transborda alimentando partidos e movimentos sociais, está na experiência das assembléias, nos momentos de greve, onde a formação intelectual continua e se desloca dando espaço à formação ética, política, por excelência. O medo é a pior resposta que podemos dar ao momento político.

Mafê é antropóloga, formada pela USP, e integra a lista de estudantes processados.

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