6 de março de 2010

Guerra sem fim

Sócrates

Há pouco tempo, assistimos a mais um conflito entre torcedores, enquanto as autoridades, perdidas, tentam encontrar as razões para tanta violência. Os motivos são vários e não podemos nos contentar em apontar apenas um deles como se por encanto pudéssemos resolver problemas de tão grande magnitude. Lembrei-me de uma reflexão feita por Tolstoi em seu clássico Guerra e Paz, verdadeira obra de arte pela harmonia entre os homens.

Escrito no início do século XIX, 200 anos atrás, o escritor russo levantava essa questão ao afirmar sobre a guerra napoleônica entre França e Rússia: “Produziu-se então uma guerra em completo desacordo com a razão e a própria natureza humana. Milhões de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de traições e de morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos e sem que, no entanto, durante todo esse período, aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados realmente criminosos”.

Aqui encontramos um dos pontos cruciais da questão. Na Inglaterra, alguns anos atrás, na época em que os chamados hooligans se sentiam livres e inimputáveis ao praticar atos de vandalismo e horrendas agressões contra torcedores rivais, estudos profundos foram realizados para tentar esclarecer a origem desse comportamento, acompanhados de iniciativas importantes para combatê-lo. O sucesso da empreitada foi tão animador que outras sociedades imediatamente também adotaram tais estratégias com resultados extremamente positivos.

E nós, o que fizemos até agora, pergunto eu? Por que não entender essas decisões e adequá-las à nossa realidade? Só não o fazemos porque não o queremos, ainda que provavelmente não consigamos resolver totalmente a questão absurdamente complexa e construída sobre o alicerce de incalculáveis causas.

E aqui volto a Tolstoi: “Para nós, a posteridade, nós que não somos historiadores nem nos deixamos levar pelo entusiasmo das investigações e examinamos, por conseguinte, com um bom-senso imperturbável os acontecimentos, as causas aparecem-nos em número incalculável. Quanto mais nos enfronhamos na investigação dessas causas, mais numerosas elas se revelam. E todas se afiguram igualmente justas, embora falsas também, dada a sua insignificância se comparadas à imensidão dos acontecimentos. E igualmente falsas pelas insuficiências, independentemente de todas as demais causas concordantes poderem ter produzido o resultado encarado”.

Por exemplo, o fato de Napoleão ter se recusado a retirar suas tropas para o outro lado da fronteira (ou, em nosso caso, o fato de colocarmos no mesmo estádio as duas torcidas beligerantes). Parece-nos valer tanto quanto a recusa de um soldado francês a realistar-se (mais ou menos como proibir a venda de bebidas alcoólicas nas cercanias do estádio, como propôs o governador e possível candidato a presidente, José Serra). Pois a verdade é que, se este não tivesse voltado à atividade e o seu exemplo seguido por milhares de soldados, teria havido bem menos homens no exército de Napoleão. E este se veria impossibilitado de declarar a guerra.

Ou seja, é absolutamente necessária a concordância de numerosas circunstâncias. E basta que faltem algumas delas para se evitarem conflitos inomináveis que levem a morticínios sem lógica. A vida do homem tem duas faces claras. A vida individual, tanto mais livre quanto mais gerais e mais abstratos os seus interesses; e também a vida como elemento social, a vida no cortiço humano em que o homem inevitavelmente tem de se submeter às leis prescritas. Neste caso, elas o levam a matar e a morrer por causas que desconhece, mas que lhe são impostas por líderes muitas vezes desconhecidos e ideologias que ele mesmo não avaliza.

É fundamental, portanto, -que- se enquadre a discussão por um ângulo mais amplo, cuja tangência poderá nos levar a entendê-lo melhor e, quem sabe, controlá-lo para o bem comum e a paz social que tanto queremos. Não nos acomodemos em particularizações que não nos levarão a lugar nenhum. E aproveitemos a experiência alheia, conforme as palavras de Goethe: “O mais tolo dos erros ocorre quando jovens inteligentes acreditam perder a originalidade ao reconhecer a verdade reconhecida dos outros”.

Fonte: Carta Capital

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